domingo, 5 de fevereiro de 2017

#65 - CANTO INTERIOR DE UMA NOITE FANTÁSTICA, António Jacinto

Sereno, mas resoluto
aqui estou -- eu mesmo! -- gritando desvairado
que há um fim por que luto
e me impede de passar ao outro lado.

Ante esta passagem de nível
nada de fáceis transposições
Do lado de cá -- pareça embora incrível
é que me meço: princípio e fim das multidões.

Não quero tudo quanto me prometem aliciantes
Nada quero, se para mim nada peço,
o meu desejar é outro -- o meu desejo é antes
o desejo dos muitos com que me pareço.

Quem quiser que venha comigo
nesta jornada terrena, humana e sincera
E se for só -- ainda assim prossigo
num mar de tumulto, impelindo os remos sem galera.

Que venham glaucas ondas em voragem
que ardam fogos infernais
que até os vermes tenham a coragem
de me cuspir no rosto e no mais.

Que os lobos uivem famintos
que os ventos redemoinhem furiosos
que até os répteis soltem seus instintos
e me envolvam traiçoeiros e viscosos.

Que me derrubem e arremessem ao chão
que espesinhem meu corpo já cansado
à tortura e ao chicote ainda responderei não
e a cada queda -- de novo serei alevantado.
E não transporei a linha divisória
entre o meu e o outro caminho
Mesmo que a minha luta não tenha glória
é no campo de combate que alinho.

Assim continuarei a lutar, ai a lutar!
num perigoso mar de paixões e de escolhos
e -- companheiros -- se neste sofrer me virdes chorar
não acrediteis em vossos olhos!

Luanda, 31-7-1952

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

#64 - CANTIGAS PARA OS TRABALHADORES DOS CAMPOS, Bernardo de Passos

Sou cavador, cavo a terra
Donde nasce a flor e o grão.
Dou aos outros a fartura
E em casa não tenho pão.

Hoje planto árvor's e vinha,
Lavro a terra, rego a horta,
E amanhã, em sendo velho,
Pedirei de porta em porta.

O sol a todos aquece,
Não nega a luz a ninguém,
Ama os bons e ama os maus
E assim foi Jesus também.

A árvore, quanto mais fruto,
Mais baixa os ramos p'ra o chão.
O homem, quanto mais rico,
Mais ergue a sua ambição.

A vida do pobre é isto:
-- Trabalhar enquanto moço,
E em velho andar às esmolas
Como o cão que busca um osso.

Morre um rico, dobram sinos!
Morre um pobre, não há dobres!
Que Deus é esse dos padres
Que não faz caso dos pobres?

Se pão não tenho, e os meus filhos
Me pedem pão a chorar,
Dou-lhes beijos, coitadinhos!
Que mais não lhes posso dar...

Sinto no mundo um rumor
Que anuncia um dia novo,
Andam profetas na terra
Abrindo os braços ao povo!

O sol nasceu cor de sangue
E a lua da mesma cor.
Gritam as bocas: Mais pão!
E os corações: Mais amor!