terça-feira, 27 de setembro de 2016

#48 - A MINHA ALDEIA, Teixeira de Pascoais

Homens, que trabalhais na minha aldeia,
Como as árvores, vós sois a Natureza.
E se vos falta, um dia, o caldo para a ceia
E tendes de emigrar,
Troncos desarreigados pelo vento,
Levais terra pegada ao coração.

E partis a chorar.
Que sofrimento,
Ó Pátria, ver crescer a tua solidão!

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

#47 - OUTRA CANTIGA, Armindo Rodrigues

O querer e não querer
são bocas da mesma fome.
Mas há pão que é de comer
e outro só o nojo o come.
Cravos de chaga sangrando
não alimentam ninguém.
Até onde e até quando
só o que é mal será bem?
Sofre, coração desfeito.
Coração desfeito, espera.
Tudo o que existe perfeito
em imperfeições se gera.

domingo, 25 de setembro de 2016

#46 - CARTA, Alexandre Dáskalos

Jesus Cristo Jesus Cristo
Jesus Cristo, meu irmão
Sou fio dos pais da terra
Tenho corpo p'ra sofrer
Boca para gritar
E comer o que comer
Os meus pés que vão
No chão
Minhas mãos que são de trabalho
Em coisas que eu não sei
E não tenho nem apalpo
Trabalho que fica feito
Para o branco me dizer
«Obra de preto sem jeito»
E minha cubata ficou
Aberta à chuva e ao vento
Vivo ali tão nu e pobre
Magrinho como o pirão
Meus fios saltam na rua
Joga o rapa sai ladrão
Preto ladrão sem imposto
Leva porrada nas mãos
Vai na rusga trabalhar
Se é da terra vai para o mar
Larga a lavra deixa os bois
Morre os bois... e depois?
Se é caçador de palanca
Se é caçador de leão
Isso não faça mal nenhum
Lança as redes no mar
Não sai leão sai atum...
Jesus Cristo Jesus Cristo
Jesus Cristo meu irmão
Sou fio dos pais da terra
Um pouco de coração
De coração e perdão
Jesus Cristo meu irmão

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

#45 - PECADO ORIGINAL, Corsino Fortes


Passo pelos dias
E deixo-os negros
Mais negros
Do que a noute brumosa.

Olho para as coisas
E torno-as velhas
Tão velhas
A cair de carunchos.

Só charcos imundos
Atestam no solo
As pegadas do meu pisar
E fica sempre rubro vermelho
Todo o rio por onde me lavo.

E não poder fugir
Não poder fugir nunca
A este destino
De dinamitar rochas
Dentro do peito...

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

#44 - MOTHERWELL (ELEGY FOR THE SPANISH REPUBLIC 108), José Alberto Oliveira

Carvão incandescente
e mineiros de um frio negro,
vítimas da febre geral
e da privação de proteínas

-- um quarto onde cheira a cebola,
um gesto que se desconhece,
a partilha do único ficando azeda.

Foi uma lama que a geada inteiriçou,
os animais de carga que sobreviveram,
pendurada na gentileza

do seu corpo a roupa
interior de um homem destruído.

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

#43 - O CAUTELEIRO, Fernanda de Castro

O cauteleiro é velho. Envelheceu
A vender ilusões pelas vielas.
Nos bairros pobres todos o conhecem,
A todos vendeu sonhos em cautelas.

Pequenos, grandes sonhos... À medida
Das várias ambições.
Grandes sonhos de viagem, de aventura,
De glória, de esplendor.
Pequenos sonhos de pequeno amor,
De modesta ventura.

O cauteleiro é velho, mas que importa?
Continua a apregoar cautelas brancas
E a vender ilusões de porta em porta.

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

#42 - O MEU CANTO É DE ESPERANÇA, Vasco Miranda

O meu canto é de esperança.

É de esperança sem fim...
O meu canto é de esperança
Que existe dentro e fora de mim.

Não vim a este mundo para viver só.
(O silêncio na minha boca, ainda quando o foi, foi um grito
que me mordeu.)
Eu vivo a dor de todos os que metem dó.
Luto por todo o que caiu na hora em que nasceu.

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

#41 - "São sombras que passam despidas", Alexandre Nave

São sombras que passam despidas
caminham sozinhas o laivo das fontes

não falam, não bebem, não abrem o céu
passam descalças o estreito caminho

muradas, sem nome desossam aos dias
amanham descalças as ervas dos rios

sufocam azuis, estaladas de ferida

são fodidas à noite como fábricas.

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

#40 - POEMA TIRADO DE UMA NOTÍCIA DE JORNAL, Manuel Bandeira

João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no morro de Babilônia
                                                                               [num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.