terça-feira, 27 de dezembro de 2016

#60 - A EPOPEIA DOS MALTESES, Mário Beirão

Choros que o pó amassaram,
Ódios, fel, desesperança,
Minha crueza geraram:
Sou a estátua da Vingança!

Maltês, meu nome de guerra!
Ver-me é logo pressentir
Que o vento sul se descerra:
Já mirram searas de o ouvir!

De noite vou pelas eiras,
-- Alma em fogo – deitar fogo
As searas, medas inteiras:
Abraso e assim desafogo!

Sou fera? Vá, que me domem!
-- E vós outros que sereis?
Não sou fera, não, sou o Homem,
O Escravo firmando leis!

Meu sangue reza nas veias;
Por quem reza? Por quem chora?
Pelos que em terras alheias
Foram escravos outrora!

Oculto no chão barrento,
Com piedade, com ternura,
Os que dormem ao relento,
Os mortos sem sepultura!

Coveiro da própria raça!
Dor de além-dor! Ao que eu vim!
Grito e medo me trespassa,
Acordo e fujo de mim!

Existo e ausento-me. Há escuro
Na minha memória: – em vão
Me interrogo e me procuro…
Sou realidade ou visão?

Choro, e as lágrimas apagam
Dúvidas, queixas, martírios…
Unções celestes afagam
A noite dos meus delírios!

Nos montes, a medo, às tardes,
Trancam-se as portas; se as forço,
Caem-me aos pés os covardes,
Mudos de assombro e de remorso!

Ascendo às regiões supremas;
Ao alto, bem alto, ao cimo,
Quebro todas as algemas:
Não sou eu; sou Deus, – redimo!

Ricos, prostrai-vos: é a hora!
Sou Deus, esmago Satã:
Do sangue nasce uma aurora,
Nas almas é já manhã!

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

#59 - QUATRO, Matilde Rosa Araújo

(Em memória do grande Amigo
Joaquim Manuel Maia de Jesus)

A rosa vermelha última a que te prendeste
A rosa vermelha nas mãos duma menina
Aquela maçã que tu deste e não comeste
E nestes quatro versos está a tua sina

Partiu-se a lua num quarto desesperado
E entrou louca pelo quatro vidros do hospital
Quatro homens levaram teu corpo gelado
E a menina escondeu duas mãos no avental

Ali na encruzilhada de todos os ventos
Tristes contando às ondas tão triste nova
Braços de pinheiros bravos foram lamentos
À rosa dos ventos lendo a verdade toda

Só aquela cadela que corria ao luar
Anda a uivar pelos caminhos a tua morte
São quatro patas pelo chão a caminhar
Arrastando a raiva humana da tua sorte.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

#58 - MONÓLOGO DUMA ACTRIZ, Ievgueni Ievtuchenko

Diz a actriz: Parece que a velha Tróia foi destruída!
Já não há papéis,
não há papéis daqueles que viravam a minha alma do avesso,
que me esgotavam de vez as lágrimas.
Estou farta desta vida, vou fugir para o campo.

Não há papéis que prestem.
Afogamo-nos no sempapelismo.
Maldita seja a união dos não escritores, não os Escritores.
Os clássicos estão encharcados como um piquete de bombeiros.
Pois não sabiam eles de Hiroxima,
da guerra de Espanha, do ano de 1937
na Rússia, de todas as nossas dores?
Não me digam que isto era impossível de contar...

Já não há papéis que prestem.
E sem bons papéis ficamos sem bússola:
tu sabes como o Universo é pavoroso.
Quando qualquer coisa desliza pelo céu
não haverá saída para essa coisa?

Faz favor, dá-me um bilhete para a estreia.
Faz favor dá-me o meu bem estar.
E papéis para a esquerda,
papéis para a direita...
Eu bebo,
bebo sem vontade, é certo,
mas que querem que faça
quando não há gente, não há papéis que prestem?

Bebe onde estiveres, trabalhador,
e com que copo -- não sei.
Não há papéis que prestem.

Chora, harmónio, em qualquer margem do grande Volga.
Não há papéis que prestem.
E em Fátima camponeses beijam Nossa Senhora, Madona de pedra e dor.
Não há papéis que prestem.

Era um moço de dezasseis anos
e bateram nele como se fosse um bombo.
Não há papéis que prestem.

Ninguém fala das mortes atrozes, mas alguém grita para o juiz. Onde? No futebol!

Não há papéis que prestem.
E sem bons papéis a vida é podridão, mais nada.
Todos nós somos génio no ventre materno,
mas muitos génio possíveis morreram
à falta de bons papéis.
Eu não exijo o sangue de ninguém --
exijo um papel que preste!


(versão de J. Seabra-Dinis
e Fernando Assis Pacheco)

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

#57 - MARCHA QUASE FÚNEBRE, Carlos Queirós

Silencioso e tranquilo
Como um rastro de desgraça,
No outro lado da praça,
O lento cortejo passa
Das meninas do asilo.

São todas órfãs? -- Pior:
São todas tristes e feias.
Saias pretas, grossas meias...
Corre-lhes sangue nas veias
Por milagre do Senhor.

Que fazem durante o dia?
-- Aprendem a soletrar.
A coser... E o sol? E o ar?
Quando pensam em lhes dar
Uma lição de alegria?

domingo, 4 de dezembro de 2016

#56 - CHAMARAM-ME CIGANO, José Afonso

Chamaram-me um dia
Cigano e maltês
Menino, não és boa rês
Abri uma cova
Na terra mais funda
Fiz dela
A minha sepultura
Entrei numa gruta
Matei um tritão
Mas tive
O diabo na mão

Havia um comboio
Já pronto a largar
E vi
O diabo a tentar
Pedi-lhe um cruzado
Fiquei logo ali
Num leito
De penas dormi
Puseram-me a ferros
Soltaram-me o cão
Mas tive o diabo na mão

Voltei de charola
De cilha e arnez
Amigo, vem cá
Outra vez
Subi uma escada
Ganhei dinheirama
Senhor D. Fulano Marquês
Perdi na roleta
Ganhei no gamão
Mas tive
O diabo na mão

Ao dar uma volta
Caí do lancil
E veio
O diabo a ganir
Nadavam piranhas
Na lagoa escura
Tamanhas
Que tal nunca vi
Limpei a viseira
Peguei no arpão
Mas tive
O diabo na mão

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

#55 - "A mestra de lavores", Fernanda de Castro

A mestra de lavores
leva, na mala de mão
estrelas, pássaros, flores.

Envelheceu a bordar
a prender em bastidores,
tudo quanto viu passar:
-- Estrelas, pássaros, flores.

Já tem os olhos cansados,
os dedos magros e picados
e sofre docoração,
mas é mestra de lavores
e tem, na mala de mão,
Estrelas, pássaros, flores.

A vida passou-lhe à porta,
passou mas não quis entrar.
Sem alegrias, sem penas,
sem a flor duma ilusão,
foi longa a vida a passar.
Mas agora que lhe importa,
Se em vez de sonhos e amores,
tem, na malinha de mão,
Estrelas, pássaros, flores?

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

#54 - RETRATO, Armando Lima Júnior

Era a Chuva!

As primeiras gotas de agosto caíam...
As crianças, nuas, corriam pela cidade
gritando, com seus gritinhos de inocentes:
Tchilufe! Tchilufe! Tchilufe!

Era a Chuva!

Três longos apitos ecoaram no Porto Grande
o barco dos contratados levantou ferros
com destino às terras do sul...

Era a chuva!

Pelas bandas do Monte-Verde
chovia já torrencialmente!...

Bendito:
A última gota de suor
os troncos em brasa
o teu corpo esquelético secando

Bendito:
Os teus filhos esfomeados
a tua mulher contratada
os teus irmãos emigrando

Bendito:
A casa grande do patrão
o teu salário cem vezes menos
o teu trabalho vinte vezes mais

Bendito:
Os povos que te escravizam
os anos de seca e de fome
e tudo que te destrói

Bendito, mil vezes Bendito
se continuares sentado
na soleira da porta
à espera do Bendito...

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

#53 - «A ILHA DOS NAVIOS PERDIDOS», Joaquim Namorado

Aqui é a ilha dos navios perdidos,
dos navios abalroados, afundados
nos naufrágios...
Esta é a ilha perdida nos mapas,
perdida no mar dos sargaços;
este é o mar das Tormentas,
das tormentas desta vida,
onde há só tempestades e agoiros;
o céu
é esta noite negra sem limites
onde não vive um astro, uma nuvem ou uma asa;
a terra é esta,
os cascos oscilantes
dos mil navios perdidos:
Naus da Índia,
barcos piratas de moiros,
fragatas e caravelas,
navios dos Corte-Reais
onde jazem insepultos
os heróis mais verdadeiros
e os sonhos mais colossais.
-- Nos mastros desmantelados
flutuam,
rotos e desbotados,
estandartes imperiais
e nos porões arrombados,
nos cofres de segredos inúteis,
dormem os tesoiros arrancados
a todos os orientes.

Não há grandeza que baste
quando a desgraça é tamanha!...

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

#52 - CANÇÃO DE NHA CHICA, Armando Lima Júnior


Nha Chica mulher rija
sete filhos para criar
perdeu seu marido no mar

Andou mexeu vendeu
carregou e criou
seus filhos-de-parida

Os filhos cresceram
voltaram patrões
com suor de Nha Chica

Faltou força e catchupa
seu xaile e seu lenço
sua vida de outrora

Voltou pedinte
de sábado-maria-santíssima
das ruas da cidade

Depois, perdida no esquecimento
foram quatro homens
e um caixão d'Igreja

Nha Chica mulher rija
com sua sina cumprida
morreu sorrindo...

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

#51 - MAGAÍÇA, Reinaldo Ferreira (F.º)

Magaíça, ao partir, não se prende
mas sofrendo no Rand é que aprende
que a mina é inferno, desterro e má sina,
que a terra é o céu de quem vive na mina!

Vem ver o sol, vem ver,
que é morte viver
debaixo do chão!

Diz, Magaíça, diz,
diz adeus à raiz,
diz adeus ao carvão...
O oiro que a mina te dá
não paga a saudade que há
no teu coração!

É lá fora que correm gazelas,
é lá fora que há nuvens e estrelas,
que o milho espigado, na seara a crescer,
parece que pede que o venham colher!

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

#50 - DOIS POEMAS DA PRAIA DA AREIA BRANCA, Sidónio Muralha

1

Na Praia da Areia Branca
os búzios não falam só do mar:
-- falam das pragas, dos clamores,
da fome dos pescadores
e dos lenços tristes a acenar.

Búzios da Praia da Areia Branca:
-- um dia
haveis de falar
unicamente do mar.


2

No fundo do mar,
há barcos, tesoiros,
segredos por desvendar
e marinheiros que foram morenos ou loiros.

Ali, não são morenos nem loiros,
-- são formas breves, a descansar,
sem ambições para os tesoiros
e de cabelos verdes dos limos do mar.

Serenos, serenos, repousam os mortos,

-- enquanto o mar
ensina o mundo a falar
a mesma língua em todos os pontos.

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

#49 - CANTO DE BAR, Mário Dionísio


Canta, cantor esquecido, tuas valsas de angústia!

Aqui o canto de bar,
onde vêm parar os que serão suicidas,
gente de todas as nações falando todas as línguas,
emigrados de todos os países.
Aqui o canto de bar
onde ancorou o jogador arruinado
e as mulheres que perderam o número dos amantes
e os moços que sonharm vidas que não puderam ter.
Onde cantores esquecidos cantam valsas lentas e antigas
que trazem a recordação de lares despedaçados.
Onde vieram parar os maltrapilhos perdidos para sempre
e onde as valsas cantadas por vozes arrastadas,
que lembram multidões de coisas,
já não trazem a mínima saudade.
Aqui onde se sabe indiferentemente
que o homem saído há pouco
estendeu a corda e se enforcou na escada.
Aqui onde se joga tudo sem interesse
porque já não há nada para jogar.
É o canto soturno
onde não entra sol nem lua.
Janelas fechadas, só fumo e luz vermelha.,
mulheres de todas as raças de cabelos degrenhados.
Aqui o canto de bar
onde veio parar o lixo de todas as nações.
(Todos que estavam a mais nas cidades e nos lares...)

Canta, cantor esquecido, tuas valsas de angústia!

terça-feira, 27 de setembro de 2016

#48 - A MINHA ALDEIA, Teixeira de Pascoais

Homens, que trabalhais na minha aldeia,
Como as árvores, vós sois a Natureza.
E se vos falta, um dia, o caldo para a ceia
E tendes de emigrar,
Troncos desarreigados pelo vento,
Levais terra pegada ao coração.

E partis a chorar.
Que sofrimento,
Ó Pátria, ver crescer a tua solidão!

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

#47 - OUTRA CANTIGA, Armindo Rodrigues

O querer e não querer
são bocas da mesma fome.
Mas há pão que é de comer
e outro só o nojo o come.
Cravos de chaga sangrando
não alimentam ninguém.
Até onde e até quando
só o que é mal será bem?
Sofre, coração desfeito.
Coração desfeito, espera.
Tudo o que existe perfeito
em imperfeições se gera.

domingo, 25 de setembro de 2016

#46 - CARTA, Alexandre Dáskalos

Jesus Cristo Jesus Cristo
Jesus Cristo, meu irmão
Sou fio dos pais da terra
Tenho corpo p'ra sofrer
Boca para gritar
E comer o que comer
Os meus pés que vão
No chão
Minhas mãos que são de trabalho
Em coisas que eu não sei
E não tenho nem apalpo
Trabalho que fica feito
Para o branco me dizer
«Obra de preto sem jeito»
E minha cubata ficou
Aberta à chuva e ao vento
Vivo ali tão nu e pobre
Magrinho como o pirão
Meus fios saltam na rua
Joga o rapa sai ladrão
Preto ladrão sem imposto
Leva porrada nas mãos
Vai na rusga trabalhar
Se é da terra vai para o mar
Larga a lavra deixa os bois
Morre os bois... e depois?
Se é caçador de palanca
Se é caçador de leão
Isso não faça mal nenhum
Lança as redes no mar
Não sai leão sai atum...
Jesus Cristo Jesus Cristo
Jesus Cristo meu irmão
Sou fio dos pais da terra
Um pouco de coração
De coração e perdão
Jesus Cristo meu irmão

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

#45 - PECADO ORIGINAL, Corsino Fortes


Passo pelos dias
E deixo-os negros
Mais negros
Do que a noute brumosa.

Olho para as coisas
E torno-as velhas
Tão velhas
A cair de carunchos.

Só charcos imundos
Atestam no solo
As pegadas do meu pisar
E fica sempre rubro vermelho
Todo o rio por onde me lavo.

E não poder fugir
Não poder fugir nunca
A este destino
De dinamitar rochas
Dentro do peito...

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

#44 - MOTHERWELL (ELEGY FOR THE SPANISH REPUBLIC 108), José Alberto Oliveira

Carvão incandescente
e mineiros de um frio negro,
vítimas da febre geral
e da privação de proteínas

-- um quarto onde cheira a cebola,
um gesto que se desconhece,
a partilha do único ficando azeda.

Foi uma lama que a geada inteiriçou,
os animais de carga que sobreviveram,
pendurada na gentileza

do seu corpo a roupa
interior de um homem destruído.

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

#43 - O CAUTELEIRO, Fernanda de Castro

O cauteleiro é velho. Envelheceu
A vender ilusões pelas vielas.
Nos bairros pobres todos o conhecem,
A todos vendeu sonhos em cautelas.

Pequenos, grandes sonhos... À medida
Das várias ambições.
Grandes sonhos de viagem, de aventura,
De glória, de esplendor.
Pequenos sonhos de pequeno amor,
De modesta ventura.

O cauteleiro é velho, mas que importa?
Continua a apregoar cautelas brancas
E a vender ilusões de porta em porta.

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

#42 - O MEU CANTO É DE ESPERANÇA, Vasco Miranda

O meu canto é de esperança.

É de esperança sem fim...
O meu canto é de esperança
Que existe dentro e fora de mim.

Não vim a este mundo para viver só.
(O silêncio na minha boca, ainda quando o foi, foi um grito
que me mordeu.)
Eu vivo a dor de todos os que metem dó.
Luto por todo o que caiu na hora em que nasceu.

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

#41 - "São sombras que passam despidas", Alexandre Nave

São sombras que passam despidas
caminham sozinhas o laivo das fontes

não falam, não bebem, não abrem o céu
passam descalças o estreito caminho

muradas, sem nome desossam aos dias
amanham descalças as ervas dos rios

sufocam azuis, estaladas de ferida

são fodidas à noite como fábricas.

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

#40 - POEMA TIRADO DE UMA NOTÍCIA DE JORNAL, Manuel Bandeira

João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no morro de Babilônia
                                                                               [num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

#39 - SARITA, António Cardoso

Sarita mora no musseque,
sofre no musseque,
mas passeia garrida na baixa
toda vermelha e azul,
toda sorriso branco de marfim,
e os brancos ficam a olhar,
perdidos no seu olhar.
Sarita usa brincos amarelos de lata
penteado de deusa egípcia
andar de gazela no mato,
desce à cidade
e sorri para toda a gente.
Depois, às seis e meia,
Sarita vai viver pró musseque
com os brancos perdidos no seu olhar!