quinta-feira, 30 de outubro de 2014

#20 - ANESTESIA, Agostinho Neto

Palpo o pó da terra
e em meus dedos
só sinto
o receio de pisar
terrenos proibidos.

Aspiro o aroma das flores
e só me figuro
o desespero
e a vala comum.

Entoo canções alegres
e o eco
responde-me em gritos amargurados.

Quero sonhar dias felizes
futuros cor de rosa
mas só vejo
meus dias escuros
carregados de tristeza.

sábado, 25 de outubro de 2014

#19 - RECITATIVO VII, Vasco Graça Moura

a necessidade
é a mãe de toda a cultura:

vi os do porto,
visível multidão de almas,
irados,
invadindo;

diziam a cidade
minguada de bom vereamento e o único
precisamente o único sítio que tinham
era onde cair mortos
e nem sequer dentro das casas: estas
têm quinze famílias diferentes
e pela sua
dilatada extensão se chamam ilhas

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

#18 - DUAS DAS FESTAS DA MORTE, João Cabral de Melo Neto

Recepções de cerimônia que dá a morte:
o morto, vestido para um ato inaugural;
e ambiguamente: com a roupa do orador
e a da estátua que se vai inaugurar.
No caixão, meio caixão meio pedestal,
o morto mais se inaugura do que morre;
e duplamente: ora sua própria estátua
ora seu próprio vivo, em dia de posse.

                            *

Piqueniques infantis que dá a morte:
os enterros de criança no Nordeste:
reservados a menores de treze anos,
impróprios a adultos (nem o seguem).
Festa meio excursão meio piquenique,
ao ar livre, boa para dia sem classe;
nela, as crianças brincam de boneca,
e aliás com uma boneca de verdade.

domingo, 19 de outubro de 2014

#17 - BICHO-GENTE, Arménio Vieira

Numa lamela de sol
uma larva de fome
na fome da hora
uma hora de bicho

(homem ou larva
bicho ou gente?)

Na fome da hora
uma larva estremece
na hora de bicho
um verme apodrece.